segunda-feira, 16 de julho de 2012

os fundamentos filosóficos do maçonismo moderno

Palavras-Chave:
Iluminismo. Humanidade. Homem. Livre-Pensamento. Libre-Discussão. Deísmo. Teísmo. Mecanicismo. Soberania. Tolerância Civil. Secularização. Cosmopolitismo. Pluralismo. Filantropia. beneficiência.
Coloco aqui a capa de alguns dos livros, da minha biblioteca, da garagem-filosófica, citados pelo Professor Fernando Catroga
Conferência gravada.



Prof. Norberto Cunha, Coordenador Científico do Museu Bernardino Machado
Apresentação do Conferencista

Com a conferência de hoje do Professor Fernando Catroga, que vai falar-nos sobre os fundamentos filosóficos da maçonaria, do maçonismo, fechamos a primeira parte do ciclo de conferências sobre a Maçonaria, que vai ser retomado em Setembro. Só queria dizer algumas palavras sobre o Prof. Fernando Catroga, não muitas. Só queriam que soubessem que o Prof. Fernando Catroga é uma das referências da nossa cultura portuguesa contemporânea pela sua originalidade, escreveu imensas obras, imensos trabalhos, desde Voltaire à secularização, o republicanismo, sobre a historiografia, a teoria da história. São trabalhos que valem a pena ler e revisitar, não só pela frescura intelectual, até pelo prazer de o lermos, porque quando o lemos temos sempre algumas perplexidades, são trabalhos que suscitam problemas, interrogações, e, por isso, tornam-se particularmente interessantes. Penso que isso se deve a uma matriz filosófica da sua escrita; e entre todos os livros que escreveu, trouxe este, que se chama “Entre Deuses e Césares: secularização, laicidade e religião civil”. É um livro interessantíssimo, do melhor que se publicou neste país nos últimos anos, e tudo o que o Prof. Fernando Catroga escreve deve-se ao seu pensamento original e ter uma visão muito sui géneris, muito própria deste país e da nossa cultura. Por isso, é um privilégio para este Museu, e para esta autarquia, tê-lo entre nós, nunca se escusando aos nossos convites.


Professor Fernando Catroga
É com muito gosto que mais uma vez aqui estou, nesta casa, é uma colaboração que já tem anos, e queria felicitar o Museu pelas suas múltiplas iniciativas e por ter trazido este tema, mas a mais sabendo que não foi a reboque da repentina actualidade que ele ganhou entre nós, já que já estava planificado. Às vezes são as coisas que vêm ter connosco, embora seja muito difícil convencer os outros de que foi o cruzamento das linhas do acaso.
Com o convite do Prof. Norberto Cunha, percebi a razão do mesmo, devido aos meus trabalhos sobre a Maçonaria, que ultiumamente não me tenho dedicado muito. Não sou maçon, julgo que é importante dizer isso. Digo isto, e não tendo nada contra a Maçonaria, para sabermos o lugar de onde falo e para também justificar a perspectiva que aqui vou privilegiar. É uma perspectiva que, talvez a expressão mais correcta, seja o conceito externalista, mesmo quando possa convocar afirmações, ou documentos, em que esta dimensão externa se repercute no interior da Maçonaria, particularmente, e, precisando um pouco melhor, no maçonismo, sem entrar numa querela que me parece que faz muitas consfuões a presuntismos ou a anti-presuntismos, saber quem é que está primeiro, isto é, se foi a maçonaria que produziu as coisas, ou se havia conjunturas que devem ser mobilizadas para explicar como é que a configuração de uma nova sociabilidade, a partir de um certo momento, vai perfilhar princípios, ideias e valores, que vai organizar-se como uma sociedade ritual, e que vai estar, de facto, num dos grandes momentos que nós podemos chamar de os momentos inaugurais da modernidade ocidental.


Não vou falar da Maçonaria portuguesa, não vou falar dos ritos maçónicos (sou um leigo nesta questão), não vou falar também das origens míticas da Maçonaria; e, por isso, falo da Maçonaria moderna, precisamente com esta ideia: a transmutação, que na linguagem da evolução neste tipo de organizações se costumam designar, e já ouviram falar noutras conferências, da passagem de uma Maçonaria operativa para uma Maçonaria especulativa. Sendo especulativa, é preciso saber o que é que eles entendiam por isso, sobre o que é que especulavam e quais eram os seus fundamentos e quais as finalidades dessa especulação e qual era a novidade quando confrontada com as chamadas dimensões corporativas de organização das profissões, como a dos pedreiros, que trabalhavam a pedra propriamente dita, e que vão agora decidir incorporar mais como metáfora numa nova Maçonaria, no que diz respeito à sua origem social, recrutamento, até aos dias de hoje. Assim, vou falar essencialmente desta Maçonaria especulativa, que vai ter o nome de franco-maçonaria. Ao contrário do que se pensa, não é porque ela vem de França, é, pelo contrário, o termo, a definição da palavra que parece designar uma espécie de assunção metafórica da Maçonaria operativa, no sentido de que dentro das lojas o homem, quando é iniciado, é como a pedra bruta, que precisa de ser trabalhada, de ser lapidada, e agora, neste novo horizonte, pressupondo a ideia de que deve ser uma espécie de ascensão, a caminho do auto-aperfeiçoamento, à luz dos princípios que remetem, quer queiramos quer não, para um fundo filosófico.
Não venho aqui defender que a Maçonaria é uma filosofia, mas há definições, até estatuárias dos grandes orientes, que defendem a Maçonaria, principalmente no século XIX, como uma associação filosófica, filantrópica, uma associação que visa, em última análise, o aperfeiçoamento dos seus membros, com o motor do aperfeiçoamento de uma outra identidade que é típica da conjuntura em que emergiu a Maçonaria especulativa, e que, de facto, está bem longe da dimensão das chamadas maçonarias operativas, cuja identidade chama-se “Humanidade”. Chama-se “Humanidade” ou chama-se “Homem”, definido numa perspectiva e há luz de uma certa dinâmica que, em última análise, para que possamos fazer depois o lançamento daqueles conceitos, fazer uma espécie de gramática de conceitos, que acabam por ser fundacionais dum percurso que não sendo uma filosofia, encitam a filosofar, e que está centrado em algumas ideias e alguns valores que, afinal, os fundadores acabam por bebê-los nos grandes movimentos de transformação mental que a Europa sofreu, particularmente a partir das guerras religiosas, da guerra dos 30 anos, enfim, todo o séculoXVII e o século XVIII, o impacto de novas filosofias, quer de carácter empirista, quer de carácter racionalista, na sua conjugação, o impacto da revolução científica moderna, particularmente com Newton, e, no fundo, a emergência de novos conceitos sobre o fundamento da política, do conceito de soberania, e a emergência também, de novas atitudes em relação ou as relações entre a sociedade política e o religioso, que vai colocar na ordem do dia, por exemplo, a ideia da tolerância, a tolerância civil. isto para dizer que este trabalho de esculpir a matéria a partir da pedra bruta e que vai carpintar, do ponto de vista metafórico, a Maçonaria especulativa, pressupõe quanto a mim fundamentos exteriores à própria Maçonaria, para que nós depois possamos também perceber, por exemplo, o próprio texto fundacional desta Maçonaria especulativa. Refiro-me às Constituições de Andersen, de 1723, que irei aqui ler duas ou três partes, e que irei comentar talvez de uma forma heterodoxa, que julgo que é uma das matrizes dessa modernidade que vem de Locke e dos seus discípulos, a questão e o exercício do livre-pensamento, conceito que vai, aliás, depois influenciar toda a Maçonaria.


Esta mutação, ou esta emergência de uma Maçonaria especulativa, está muito ligada à cultura britânica. Para alguns terá começado na Escócia, mas é evidente que é, sobretudo, em Inglaterra, e dentro da Inglaterra em Londres, que ela vai, de certo modo, instituir-se com a Loja de referência das chamadas maçonarias regulares, caso da Grande Loja de Londres (1717) e que depois, de facto, vai crescer: em 1725 já tinha 23 lojas e, em 1733, contava já com 126 lojas. E vai ter duas figuras preponderantes, que eram duas figuras religiosas, protestantes, um James Andersen, e que em colaboração com um inglês, filho de perseguidos religiosos franceses, que vão dar feição original, digamos, constitucional, a esta Maçonaria especulativa. Este descendente de filhos franceses que não é muito falado, Désaguliers, amigo de Newton, ele próprio um grande cientista, membro da Sociedade Real, onde se reuniam os grandes sábios, ligado á física experimental, e, simultaneamente, teólogo e um grande apologeta da nova ordem, de tal modo que a propagação da Maçonaria em outras regiões da Europa se deve ao seu activismo. Podemos dizer que foram estes os dois pais fundadores da Maçonaria especulativa, que tem, de facto, como pátria, a Inglaterra. É daí que ela depois se vai irradiar numa longa história, que vai ter as suas heterodoxias, que vai ter as suas divisões, mas que vai passar por Hamburgo (1727), Madrid (1728) – estou a falar das primeiras lojas –, Gibraltar (1729), Paris (1732) e Lisboa. Continua-se a discutir se a primeira loja constituída por britânicos é de 1727, mas pelo menos há alguma notícia dessa loja, segundo o registo da Inquisição, como sendo a Loja dos Hereges Mercadores, e que depois se regularizou, segundo notícia na Grande Loja de Londres, estando ligada muito esta às comunidades estrangeiras, sobretudo ligadas ao comércio, e que vão, enfim, dar origens a lojas como O Grande oriente Lusitano, a qual, com alguma estabilidade, e com o impacto dos oficiais britânicos nas guerras, nos finais do século XVIII e depois nas invasões napoleónicas, que essa Maçonaria se consolida em Portugal e que cada vez mais incorpora portugueses, ou então surgem por iniciativa de portugueses, sendo lojas estritamente nacionais. O impulso britânico marcou muito esta génese por razões que se prendem essencialmente com o desenvolvimento de um pensamento de carácter científico-experimental muito forte e que vai culminar com a nova visão do universo, chamada a visão mecanicista do universo, que é dada pela nova descoberta de Newton. Newton era um crente que tinha grandes dúvidas, por exemplo, do conceito da Santíssima Trindade, e esta ideia, que foi muito cultivada e que esteve muito subjacente ao pensamento europeu, sobretudo com o impacto das guerras religiosas, a maior de todas a Guerra dos Trinta Anos, mas depois também a guerra civil na Inglaterra entre os Tudors e a Casa de Hannover, as emigrações para a América, os grandes debates sobre a possibilidade uma paz civil e quais são os limites que se devem pôr ao religioso para que o político possa garantir a prossecução do bem-comum, sobretudo, quando se convocava Deus, um Deus que era um Deus teísta, isto é, um Deus antropormófico, um Deus do Cristianismo, um Deus interventivo, mas que com as várias leituras que começaram a ser feitas, e com os cismos do próprio Cristianismo, aquilo que deveria ser o fundamento da verdade, Deus uno e indivisível, passou a ser motivo de discórdia e a impossibilidade da paz civil nas comunidades politicamente organizadas. E, por isso, o debate sobre a tolerância, a partir de determinado momento, a tolerância que era em alguns teólogos uma tolerância religiosa, afinal, as religiões do livro deveriam tolerar-se umas às outras. Ora, o que acontece de novo, nesta contenda, que vai levar à emergência de uma série de ensaios marcantes, ainda hoje no pensamento ocidental, é a conotação que é dada à tolerância, e que tem a sua melhor expressão num refugiado, naquilo que era a pátria de todos os heterodoxos deste período, fossem católicos, huguenotes, anglicanos, na Holanda. É precisamente na Holanda que, estou a referir-me a Locke, que as suas célebres “Cartas sobre a Tolerância” devem ser lidas e articuladas com os seus ensaios políticos e com a sua teoria do conhecimento, de carácter empirista, interessando-nos aqui o uso do conceito da tolerância, para questão a tolerância civil, e que, de certo modo, vinculando algo que depois Voltaire, no seu ensaio sobre a Tolerância, uns anos depois, vai retomar, e que é, afinal, a necessidade de uma reorganização do político e do espiritual, de maneira a que a sociedade política possa ser garante da paz civil e, para isso, era preciso que o religioso refluísse para a esfera do privado, ou para a esfera do direito associativo para prática da crença, em suma, encontramos em Locke, pela primeira vez, e de uma maneira sistematizada, a defesa da necessidade da separação da Igreja do Estado.


Em termos conceptuais, dizemos que isso é uma conjuntura onde se assiste ao fenómeno da secularização: vamos assistir à secularização da natureza, isto é, cada vez mais se reivindica a autonomia do entendimento humano, porque se acredita na autossuficiência da razão, ou que se acredita pela combinatória entre a razão e o mundo dos sentidos, o mundo da experiência, o homem consegue perceber a legalidade, as leis do próprio universo, esta crença de que o homem pode, no fundo, chegar às leis científicas, pode ter um saber totalmente seu sobre a natureza, a expressão é de Francis Bacon no seu “Organon”, tendo esta conjuntura, como pano de fundo, uma mudança nas elites intelectuais e muitos deles ligados à prática científica, aquilo que nós na linguagem técnica chamámos de Deísmo. O que é o Deísmo? O conceito de Deísmo é um conceito que tem a ver com o significado de religião natural. A crença de que o homem se basta a si próprio, é porque o homem é um ser naturalmente religioso e polissémico, é o modo como ele manifesta essa sua necessidade, embora se aceitasse que o Cristianismo tinha sido ou seria a forma superior de expressar essa necessidade, isso significa que o Cristianismo não poderia ser o exclusivo do monopólio da verdade. Mais: o seu estatuto, o Cristianismo como religião revelada, mas revelada por Deus a homens que por sua vez escreveram a revelação, o próprio livro deveria ser objecto científico. A natureza é um livro que está escrito em linguagem matemática, diz-nos Galileu; mas esta conjuntura também vai dizer algo, e que começa com Espinosa: os próprios livros religiosos, afinal, são históricos, na medida em que foram feitos pelos homens e, portanto, é necessária a historicidade, a través de um método histórico-filológico; e tudo isto conjugado com outros factores, ficava bem, sobretudo no pensamento anglo-saxónico, com repercussões imediatas em França, com fundo de Deísmo, não do Teísmo, porque o Deus criador do Teísmo é o Deus-pessoa, o Deus do Deísmo é mais um Deus-geómetra, é o Supremo Arquitecto do Universo, é o Deus que é logos, razão, e se é razão criou o homem à sua imagem e semelhança, e logo o homem também é à sua maneira Deus na terra, e a razão do homem consegue compreender a racionalidade que Deus inevitavelmente tinha que inscrever na ordem das coisas, como é o caso do princípio da razão suficiente de Leibniz, não só das coisas, mas da própria história. Há uma razão na História que a razão do homem pode compreender. E pergunta-se: e Deus não intervém na natureza, no terreno da história? Sim, o Deus da crença popular, o Deus das religiões, o Deus do Teísmo ainda acredita nisso. Só que o Deus do Deísmo é um Deus criador do universo, do homem, mas é um Deus indiferente em relação ao universo e ao homem, como quem diz, é o Deus que escreveu uma ordem das coisas, o homem à sua imagem e semelhança e, portanto, o homem tem em si a capacidade para compreender as coisas, porque elas têm uma lógica, elas têm uma racionalidade, sendo necessária a sua compreensão. E quando se pergunta que Deus é este, sem dúvida que, aparentemente, vê-se o Deus da religião do livro, mas já não é o Deus das igrejas, é o Deus que aceitou a sua transcendência e a sua indiferença ao mundo, é um Deus, de certo modo, da religião natural, que diz os modos diferentes de celebrar o sagrado. Em última análise, exprime-se este princípio unitário que está para além das religiões feitas propriamente ditas e que são da ordem da natureza. Deísmo, mecanicismo e outros conceitos, são chaves para que nós possamos entender o documento fundador da Maçonaria especulativa.

Aliás, as Constituições de Andersen, já o dissemos, foi um produto de conjunto, entre Andersen e Désaguilers, imbuídas de Deísmo e que as maçonarias irregulares que depois irão aparecer irão constituí-las como documentos de referência. O que vou tentar fazer agora é uma análise internalista e vou procurar fazer um exercício hermenêutico daquilo que está dito, o seu significado, mas o seu significado epocal, sem cair em anacronismos. O que é que verdadeiramente queremos dizer quando esta Constituição foi escrita? Diz ela: “Um maçon é obrigado pela sua condição a obedecer à lei moral; e se compreender correctamente a arte, nunca será uma teu estúpido, nem um libertino irreligioso”. Mas, embora nos tempos antigos, os maçons fossem obrigados em cada país, a serem da religião desse país, ou nação qualquer que ela fosse, julga-se agora mais adequado obriga-los apenas àquela religião na  qual todos os homens concordam, deixando a cada um as suas convicções próprias, isto é, a sempre homens bons e leais, honrados e honestos, quaisquer que sejam as denominações ou crenças que os possam distinguir. Por consequência, a Maçonaria converte-se no centro de união e no meio de conciliar uma amizade verdadeira em pessoas que podiam permanecer sempre distanciadas. O que é que aqui se vê? Uma referência ao horizonte das guerras religiosas, uma referência muito clara a um velho princípio que vem já da Idade Média e que depois teve várias traduções: a sua dimensão teológica, fora da igreja não há salvação e na sua dedução teológica política, a cada reino a sua religião: “Os súbditos têm que ter a religião do Rei”, ou ainda algo que ficou consagrado no Tratado de Vestefália, quando houve grandes movimentos de populações de maneira a procurar uma teórica homogeneidade entre as religiões e o político, e que os franceses foram os paladinos desta consignação na fórmula “Une Foi, Un Roi, Une Loi”. Bem, para não falarmos dos países do sul da Europa, onde o olho da Inquisição funcionava; e, por isso, esta Maçonaria especulativa, ela quer ser um lugar de pluralismo religioso, mas demarca-se simultaneamente do “ateu estúpido” ou do “libertino irreligioso” (e isto vai colocar a questão, tempos depois, se os ateus ou não devem ser incluídos na Maçonaria). É que a virtude da literatura sobre a tolerância do século XVII e mesmo no século XVIII, tem uma abertura tal de tolerância civil em relação às religiões, sendo uma tolerância que pressupõe um intolerante, ou uma intolerância fundamental (Locke), enquanto que um outro, perseguido e que estava em Amsterdão, Pierre Bell, vai contestar, dizendo, o ateu deve ser tolerante em relação ao ateu, assim como em relação aos católicos, aos papistas, porque obedecem ao Papa, logo não têm autodeterminação, e o ateu deve ser intolerante porque o ateu não acredita na essência de Deus e na imortalidade da alma, não pode dar garantias pelo fundamento da responsabilidade ética para sua própria acção; e porquê? Porque não tem medo do juízo final. Por isso, esta referências ao “ateu estúpido” relaciona-se muito com aquilo que vão ser  as premissas desta Maçonaria especulativa, sob o ponto de vista metafísico. Primeiro: a evocação do Supremo Arquitecto do Universo, um Deeus que é um Deus de todas as religiões, a exclusão dos ateus, precisamente porque o ateu não se sabia comportar, obedecer à lei moral porque não tinha mediação do juízo final para as suas acções. De qualquer modo, Já nesta conjuntura, Pierre Bell é o primeiro a dizer “sim”, já que o ateu pode ser eticamente tão responsável como o crente, porque “conheço ateus que só fazem o bem e conheço crentes que só fazem o mal”. Esta ideia de que o caminhar para uma sociedade que, em última análise, o princípio de homogeneidade do religioso com o político, que era uma condição metafísica que vinha da Idade Média, segundo a qual se acreditava que uma sociedade religiosamente pluralista iria prejudicar aqueles crentes na ressurreição final dos corpos, dessa dimensão colectivista; e, por isso, a ideia da homogeneidade do político e do religioso tinha justificação teológica e que ela se vai traduzir de facto nestes princípios e que é uma das bases das guerras religiosas no século XVIII.
Vejamos outro passo das Constituições de Andersen: “Um pedreiro é um súbdito tranquilo do poder civil, onde quer que resida o trabalho, e nunca deve promiscuir-se em planos e conspirações contra a paz e o bem-estar da Nação, nem contrapor-se indevidamente para com os magistrados inferiores. Porque, como a Maçonaria tem sempre sido prejudicada pela guerra, a infusão de sangue e a desordem, assim os antigos reis e princípios dispuseram a encorajar os artífices por causa da sua tranquilidade e lealdade, por meio das quais respondiam na prática às cabilações dos adversários e concorriam para a honra da fraternidade, sempre florescente em tempo de paz.”


Esta ideia de que nas lojas não se deve discutir política, mas sim discutir princípios que ajudem a elevação espiritual dos seus membros, isto está, de facto, na letra e no espírito nas Constituições de Andersen. Em suma, a Maçonaria especulativa, uma das faces daquele grande movimento da história das ideias que designamos por Iluminismo, estando em causa uma visão antropocêntrica do mundo, uma visão onde o teocêntrico, mesmo que esteja pressuposto, fica cada vez mais distante como critério invocar das acções práticas, ou mesmo do pensamento. Aliás, quando Kant responde á pergunta o que é o Iluminismo, responde que á a passagem da menoridade para a maioridade do homem, isto é, quando o homem faz um bom uso da sua razão, não obedecendo a algo que seja exterior aos imperativos da sua racionalidade, estando aqui o problema de uma moral autónoma, que se demarca de uma moral heterónoma, estando esta sujeita ao sujeito da autoridade. Por outro lado, a ideia de que a livre discussão pautada por critérios racionais traz a luz, ilumina.  Insto inscreve-se na velha tradição do pensamento ocidental da metáfora da luz, que a Maçonaria vai incorporar precisamente agora com estas mediações, mas também vai incorporar uma outra faceta, que é a ritualística, a ideia de que uma sociedade iniciática que acaba por reproduzir não só a metáfora da morte e da ressurreição, mas, no fundo, toda uma velha tradição da cultura ocidental, que talvez a alegoria da caverna de Platão seja o exemplo mais típico da escuridão, havendo a necessidade de fazer uma ascese, uma ascese por degraus, para que cada vez mais, através da luz, o homem se transformando a si próprio, transforma o mundo que o rodeia. Assim, a Maçonaria, do ponto de vista aos condicionamentos, toca, no conjunto daquelas correntes defensoras de uma visão mais antropocêntrica do mundo, crendo, não numa independência do homem em relação a Deus, porque não se trata ainda nem sequer de um quadro agnóstico, muito menos ateu, mas na ideia de que o homem através da capacidade do entendimento, na linguagem anglo-saxónica, através da razão, desde que não esteja coacto, isto é, que deixe que o pensamento seja livre, ele consegue verdades demonstradas pela ciência, consegue verdades deduzidas, através da racionalidade, e, portanto, consegue criar conhecimentos e são conhecimentos que podem ser postos ao serviço do aperfeiçoamento do próprio homem. Há quase uma dimensão mística na Maçonaria e ela vai nascer sob o impacto das ciências experimentais e, de qualquer modo, os seus fundadores vão produzir mecanismos mais ligados à reinvenção do passado que parece que vão entrar em contradição com a componente iluminista, projectando a ideia de pensadores-livres, estando patente aquilo a que nós podemos chamar de cultura liberal. A questão dos valores, como a do livre-exame e outros valores que vão estar consignados na cultura iluminista, e, também em alguns maçons de matriz anglo-saxónica, nos Estados Unidos, com a emergência das declarações, nomeadamente na Virgínia, dos direitos do homem, onde nós vamos encontrar consignados esta visão antropomórfica, baseada numa ideia de que há uma natureza humana que só por si é o paradigma mais unificante de que o próprio Deus das religiões propriamente ditas, porque este Deus tinha dado origem a guerras, e acreditava-se que como a natureza humana, a partir da inferência daquilo que lhe é natural, que lhe é essencial, como fonte inspiradora dos direitos positivos, das normas de uma moral autónoma, talvez a paz entre os homens fosse mais possível de garantir do que, afinal pela garantia que era da pelo peso dominante do religioso em relação ao político. E é por isso que a Maçonaria vai ser sensível a algo que surge nesta época, muito ligado ao princípio da tolerância, numa visão optimista sobre o homem, na capacidade do próprio homem ir-se aperfeiçoando, na metáfora do trabalho do pedreiro, e a ideia de que há uma natureza humana, havendo um desfasamento entre aquilo que é da ordem da natureza humana, com os seus aprioris definitivos, sendo colocada como fonte de inspiração das próprias constituições, mas ela própria como acção do homem, porque afinal o homem pode fazer-se a si mesmo, no sentido de que quanto mais ele se realizar historicamente daquilo que é da sua natureza, quanto mais ele conseguir racionalizar a ordem social, a ordem política, etc., mais humano se pode concretizar. Este optimismo antropológico vai ser expresso, por exemplo, numa espécie de utopia, uma utopia humanitarista, que se traduz, por exemplo, no projecto da paz perpétua, na possibilidade de um dia o homem conseguir controlar propriamente o seu destino, a guerra, mesmo existindo o conflito, ela era arbitrária (Abade Saint-Pierre), sobretudo Kant, fazem disto, afinal, a inscrição de uma visão optimista do homem, que tem como raiz o seu antropocentrismo, expressando um dos valores muito fortes da Maçonaria, que é a sua dimensão ao serviço da humanidade, e é preciso aqui dizer que a humanidade, esta expressão a “Humanidade” na cultura ocidental só passou a ser substantivo abstracto praticamente no século XVIII. É claro que se pode dizer que os históricos já falavam de uma espécie da identidade da natureza humana, ou que o Cristianismo, ao contrário do Judaísmo, já quis ser uma religião universal, só que o que agora se diz é que o homem é um ser auto-suficiente, filho de um Deus que já não intervém, órfão, não o traz pela mão. O homem é que é o responsável pelo seu próprio destino e, portanto, a aventura humana que tem o concreto, o particular, ao contrário do que se pensa, o Iluminismo não defendeu a homogeneidade, vai defender uma humanidade como uma espécie de identidade autossuficiente que tem como situações em espaços e tempos concretos, mas que se vai realizando em devir, a ideia de progresso, e da perfectibilidade humana. A plena realização só se pode dar em que a parte seja inserida num todo; e, por isso, o século XVIII, o maçonismo vai ser muito claro, vai ter uma palavra-chave, o cosmopolitismo, diferente dos nossos dias. Termo que começa a aparecer para no fundo dizer que os pressupostos do optimismo do homem se realizem no particular, a uma escala universal, que deve caminhar para a construção de um plano da cosmópolis e daí o sonho de uma república universal. Ora, as maçonarias não vão querer ter nacionalistas, defende a sua dimensão cosmopolita. Por outro lado, pergunta-se, como é que estes valores se irão concretizar, e que, em última análise, poderiam funcionar como uma espécie de guia, de uma agenda de especulação filosófica, inerente a uma sociedade de pensadores; mas a Maçonaria não quis ser, nem quer ser, uma sociedade de pensadores. Pelo contrário, foi uma associação que nasceu para transformar os seus membros de modo a que estes pudessem transformar o seu próprio meio, em termos que fossem alternativos àquilo que para eles era um fracasso da apologética das religiões e, em particular, o Cristianismo. E, por isso, nós hoje lemos praticamente nas Constituições do Oriente também a definição de que a Maçonaria é uma associação filantrópica e quando se diz isto, é porque ela é filantrópica (nos primórdios o que existia era a caridade, não havia sociedade de socorros-mútuo), e é indiscutível que a comunidade maçónica nasce para uma auto-protecção dos seus membros, e, portanto, muitas vezes confunde-se esse conceito exterior à própria Maçonaria, aparecendo com ênfase, aplicando-se também em ralação ao mundo exterior. Porquê? Porque a filantropia significa a amizade desinteressada pela espécie humana em toda a sua extensão.



É precisamente no século XVIII que a palavra filantropia aparece e é divulgada. Um outro termo que tem ênfase nesta conjuntura, é o termo beneficência, precisamente porque é um termo que se contrapõe ao termo caridade, prova de que estávamos suficientemente numa sociedade secularizada em relação aos próprios valores, porque beneficência é fazer o bem, e a palavra foi inventada pelo primeiro grande teórico da paz perpétua, Abade de Saint-Pierre. Mal de nós sabíamos o futuro deste conceito, que depois vai ser aplicado a sociedades que surgem para esses propósitos. No fundo, é esta a gramática dos conceitos fundamentais, que influenciariam a Maçonaria, e incorporados no próprio texto da Maçonaria, mas que esta Maçonaria especulativa, na sua fase inaugural, vai dar a sua elaboração própria e, mais, vai enquadrá-la numa dimensão ritualística onde há um outro tipo de cultura que parece que está em contradição com esta, tendo sido Désaguliers que incorporou essa faceta, com a Cabala. Não há, aliás, um Iluminismo puro, existe sempre uma dimensão sombra e de mistério, e para muitos historiadores, este tipo de Maçonaria, ainda antes de ser politizada no Século XIX e no século XX, os seus sucessos devesse ao facto de ter incorporado nos seus debates nas suas sessões, nos seus pressupostos de carácter, chamemos assim, mais iluministas, esta dimensão ritualística-simbólica. Aqui está o seu segredo, porque há o cultivo de algo oculto, e sendo misterioso acaba por ser atractivo. E daí esta pergunta muito polémica: em última análise, não será a Maçonaria uam religião? Aqui sigo um autor meu preferido, George Gustorf, que responde que sim. Mas que religião é essa? No fundo, pressupõe um Deus que é indiferente, frio, um Deus geómetra, é arquitecto, que planifica. Assim Deus terá feito o mundo. Mas a Maçonaria diz-nos que a razão não é auto-suficiente, só o é numa certa perspectiva, e ela precisa do símbolo, do rito, ela precisa da sensibilidade, da liturgia. E terá sido esta mistura, que no fundo é uma religião que não é uma religião, é uma religião que possibilita a coexistência e a coabitação de todas as religiões, excluíam os ateus, incluindo os católicos. A Maçonaria, aparecendo como uma sociedade de espiritualização dos seus membros, recoberta pelo seu secretismo, quando muito uma sociedade discreta, e, com esta dimensão, contra algumas das suas premissas possivelmente intelectualistas, a Maçonaria tinha o que as religiões não tinham, a crença da existência de uma divindade, como através dos seus graus e dos seus ritos, possibilitava uma carreira aberta, uma espécie de sacerdócio democrático em termos de loja, que de certo modo  funcionava como embrião das sociedades em via de democratização, porque a discussão era livre, fomentava-se a argumentação, a  retórica e, por outro lado, também, através dos empenhamentos do estudo, dos rituais, todos podiam ascender a todos os lugares, inclusive a lugares supremos. É neste sentido que há algo de religioso, uma religião secularizada, um sagrado não clerical, diz-nos Gusdorf, um sacerdócio secularizado.
Em suma, independentemente das histórias da Maçonaria, a história da Maçonaria também é a história das suas dissidências, das suas heterodoxias, das suas ligações ao mundo profano, os seus compromissos, do seu não comprimento dos seus próprios princípios, mas também dos seus próprios cumprimentos. Acasalando as matrizes fundamentais da modernidade, à volta dos conceitos fundamentais, deísmo, visão mecanicista do mundo, a edificação da humanidade, cosmopolitismo, filantropia, o antropocentrismo, beneficência, julgo que são valores chaves para explicar o maçonismo.

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